publicado em 25/09/2023
REFORMA TRIBUTÁRIA - PRINCIPAIS ASPECTOS DA PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL APROVADA NA CÂMARA
1. CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS
O sistema tributário brasileiro encontra-se em avançado estado de entropia. Transformou-se em um amontoado de remendos e exceções, que descaracterizam completamente a estrutura original. Casuísmos, oriundos tanto dos entes federativos, como de grupos de influência, sem falar das "contribuições" do Poder Judiciário, o tornaram caótico, incompreensível (inclusive para profissionais da área tributária), enfim, uma fonte perene de incerteza e insegurança jurídicas.
Em razão disso, foram diversas as tentativas de reformá-lo ao longo dos últimos anos. Nesse sentido, vários projetos foram apresentados, mas faltava a vontade política e o apoio da sociedade civil para levá-los adiante. Não falta mais. O último deles, a Proposta de Emenda Constitucional n. 45, de 2019, andou graças à conjunção de esforços dos congressistas, dos governantes (inclusive de governadores de oposição) e das entidades representativas de diversos setores da sociedade civil.
Antes, porém, de analisá-la, é importante ter em mente alguns dos princípios que devem orientar a modelagem tributária. Um bom sistema tributário deve chegar à melhor ponderação possível de simplicidade, justiça e neutralidade econômica.
A simplicidade conduz a tributos com bases amplas, alcance geral, poucas variantes e exceções (regimes distintos, múltiplas alíquotas, isenções), facilitando o cumprimento das obrigações pelos contribuintes, a gestão eficaz pela administração tributária, e reduzindo as oportunidades de evasão e mesmo de planejamento tributário (elisão).
A justiça aponta na direção oposta: diferenciações voltadas a garantir que a carga tributária seja distribuída desproporcionalmente entre as camadas da população, de forma a que os que ganham menos sofram um menor impacto sobre seu patrimônio e renda, e os que ganham mais tenham um percentual maior de patrimônio e renda tributados - buscando assim efetivar o princípio da capacidade contributiva previsto pela Constituição Federal. Para isso, vale-se de isenções, reduções de base de cálculo, regimes diferenciados, alíquotas reduzidas, alíquotas intermediárias e alíquotas mais altas. Favorece a tributação da renda e do patrimônio em detrimento do consumo. Aumenta-se, assim, a complexidade do sistema e, com isso, as dificuldades para sua compreensão, cumprimento e aplicação; inversamente, multiplicam-se as oportunidades de fuga, lícita ou ilícita, à tributação.
De sua parte, a eficiência econômica (não confundir com eficiência arrecadatória) leva a tributos que não distorçam as decisões dos agentes econômicos na alocação de recursos produtivos. É inimiga dos incentivos fiscais, que geram investimentos nem sempre racionais, favorecimento de grupos e setores específicos e concorrência desleal entre os que estão dentro do benefício e os que estão fora. Anda de braços dados com a simplicidade, ao preconizar tributos com base ampla e alcance generalizado, o que permite o estabelecimento de alíquotas mais baixas. Nesse sentido, o tributo modelo ou ideal é o imposto sobre valor agregado - IVA sobre a totalidade das operações envolvendo bens e serviços, materiais e intangíveis, com uma única alíquota, tributação no destino, sem exceções.
Conciliar minimamente esses princípios num regime democrático, partindo de um sistema tributário já estabelecido, e não criado ex nihilo (do nada), envolve uma complexa costura político-econômico-social. Simplificar é eliminar ou minimizar diferenças; fazer justiça é o contrário disso. É preciso então estabelecer um diálogo, uma ponderação entre esses princípios, garantindo razoavelmente a realização de cada um deles. Assim, no lugar de uma única alíquota, algumas poucas; ao invés de um só regime tributário, também alguns; e assim sucessivamente.
E é nessa linha que andam os trabalhos legislativos em torno da PEC 45. Conscientes de que o ótimo é inimigo do bom, os atores envolvidos na negociação de seu texto tiveram senso das possibilidades políticas e trataram de aproveitar o momento favorável à reforma. Isso fica patente na comparação entre o texto original da PEC, que propunha algo muito próximo ao modelo ideal do IVA, e o texto aprovado na Câmara, que acrescentou novas exceções às previstas naquele, em razão de demandas setoriais e federativas. E é previsível que essas exceções sejam até ampliadas no Senado, onde a PEC atualmente se encontra.
2. GRANDES EIXOS DA PROPOSTA
A PEC 45, na versão aprovada pela Câmara, e que, como assinalado, certamente sofrerá alterações no Senado (embora contenha muitos elementos de outra PEC, de n. 110, que corria em paralelo nesta casa legislativa), apresenta os seguintes grandes eixos:
- Criação de dois tributos sobre o consumo, o Imposto sobre Bens e Serviços - IBS (que substituirá ICMS e ISSQN), de titularidade dos estados/municípios, e a Contribuição sobre Bens e Serviços - CBS (no lugar de IPI, PIS e COFINS), da União, ambos com base de incidência ampla e não cumulatividade plena;
- Uniformidade normativa dos novos tributos, que observarão as mesmas regras e critérios em âmbito nacional;
- Coordenação e gestão nacionais do IBS;
- Tributação do IBS no destino;
- Criação de um Imposto Seletivo, da União, que incidirá sobre um espectro reduzido de bens que afetam a saúde e o meio ambiente;
- E neutralidade da carga fiscal, ou seja, o novo cenário não poderá, em sua etapa inicial (de transição), acarretar impactos no tamanho (aumento ou diminuição) e na distribuição da carga entre os entes federativos.
Os dois novos tributos sobre o consumo - IBS e CBS - compartilharão as seguintes características:
Base ampla. Incidirão sobre a totalidade dos bens e serviços, tanto corpóreos (tangíveis) como incorpóreos (intangíveis).
Cobrança por fora. Será o fim da inclusão do tributo na própria base de cálculo, questão que gerou tantas controvérsias ao longo dos últimos anos.
Não-cumulatividade plena. Ressalvados os bens e serviços de uso pessoal, tudo que for adquirido pelo contribuinte gerará créditos. Com isso, também finda a multitudinária discussão sobre quais bens e serviços dão direito a creditamento, fonte de tanta insegurança, seja no âmbito federal (caso do PIS e COFINS), seja na esfera estadual (envolvendo o ICMS).
Poucas alíquotas. Se o ideal era uma única alíquota, a realidade impôs três: padrão (a ser definida), reduzida (40% da alíquota padrão) e alíquota zero, conforme o grau de essencialidade do bem ou serviço. Não poderão ser criadas outras alíquotas pela legislação infraconstitucional.
Poucos regimes diferenciados. Assim como em relação às alíquotas, os regimes diferenciados serão apenas aqueles taxativamente previstos no texto da PEC.
Tributação, em operações interestaduais, exclusivamente no destino. Ainda que após um longo processo de transição, o compartilhamento do ICMS entre origem e destino cederá lugar à tributação exclusivamente neste. Esse critério, além de ser o mais adequado à base de tributação, que é o consumo, torna desinteressante a guerra fiscal, na medida em que o tributo deixará de ser devido ao estado em que se encontra instalado o estabelecimento industrial, comercial ou de prestação de serviços.
Uniformidade legislativa. A legislação infraconstitucional deverá dar tratamento uniforme a ambos os tributos, garantindo que as características acima sejam reguladas da mesma maneira.
3. BASE DE TRIBUTAÇÃO AMPLA
Nos moldes do IVA, a incidência de CBS/IBS alcançará a totalidade dos bens, direitos e serviços, independentemente de sua natureza e materialidade, o que inclui toda a economia digital. Acabam com isso as discussões relativas a enquadramento de serviços em lista do ISSQN, e de operações diversas no PIS e na COFINS. Ressalvadas dessa generalidade são apenas as situações expressamente mencionadas no texto, das quais se tratará adiante.
4. ALÍQUOTAS
Conforme dito, a proposta de uma alíquota única, constante do projeto original, deu lugar à criação de três: alíquota padrão; alíquota reduzida, correspondente a 40% da padrão; e alíquota zero.
A alíquota padrão, não especificada no texto, será estabelecida após a calibragem prevista para o período de transição. Nesse período, a CBS incidirá à alíquota de 0,9%, e o IBS, à alíquota de 0,1%. Por que essa calibragem? Para garantir que, na mudança de sistema (período de transição), não haja nem perdas nem ganhos de arrecadação, de modo que o resultado seja neutro. Mas isso não significa que todos os contribuintes recolherão após a reforma o que vinham recolhendo antes dela. Em termos de carga setorial, haverá, sim, aumentos e reduções. O setor de serviços será mais fortemente afetado, especialmente em relação às atividades que tenham pouco potencial de aproveitamento de créditos, caso dos serviços profissionais.
De todo modo, uma primeira estimativa do que poderá ser essa alíquota foi divulgada pelo Ministério da Fazenda: somados CBS e IBS, algo entre 25,45% e 27%. Mas, como assinalado, isso realmente será definido no período de transição. O mesmo estudo aponta que, sem o redutor de alíquota aprovado na Câmara, a alíquota base seria significativamente menor: entre 20,73% e 22,02%.
Diante das incertezas, existe a possibilidade de, no Senado, ser estipulada uma alíquota máxima, ou seja, um teto que não poderia ser ultrapassado pela legislação infraconstitucional. Por isso, talvez, o Ministério tenha tomado a cautela de já antecipar qual seria, a seu ver, essa alíquota (27%), isso se não forem abertas novas exceções à alíquota base ou ampliadas as existentes. Já algumas entidades representativas do setor empresarial, caso da FIESP, vêm defendendo uma alíquota máxima de 25%.
Na fase de transição, a ser vista adiante, a alíquota será fixada pelo Senado (alíquota de referência) de forma a ter impacto neutro na carga tributária, mas, a partir daí, os entes federativos terão autonomia para estabelecer alíquotas próprias, desde que aplicáveis a todos os bens e serviços, sem possibilidade de distinção entre eles. No caso do IBS, essa prerrogativa será partilha entre Estados e Municípios. Assim, numa operação destinada, por exemplo, a João Pessoa-PB, a alíquota do IBS será a soma da fixada pelo Estado da Paraíba (digamos, 19%) e a estipulada pelo Município de João Pessoa (digamos, 5%), ou seja, 24%. Daí a importância de o próprio texto constitucional, como dito acima, dispor sobre a alíquota máxima, contendo o apetite voraz de determinados entes federativos.
Para os setores industrial e comercial, os números ventilados não são tão assustadores, pois, em muitos casos, a soma de ICMS, PIS, COFINS e IPI sobre as operações por eles praticadas até os ultrapassa. O problema reside no setor de serviços, ao qual se aplica o ISSQN, com alíquota máxima de 5%, e o PIS e COFINS em regime cumulativo, nas alíquotas de 0,65% e 3,0%, totalizando 8,65%. Bem verdade que esses tributos incidem sobre a receita bruta, sem qualquer crédito decorrente de operações anteriores. Mas, como se verá a seguir, a aplicação do regime não-cumulativo amplo previsto na PEC não traz grande vantagem aos prestadores de serviços.
A alíquota reduzida corresponderá a 40% da alíquota padrão. Assim, se esta for de 25%, aquela será de 10%. Ela se aplicará apenas aos casos expressamente previstos no texto constitucional. Os principais, até o presente momento (a lista, possivelmente, será estendida a outros no Senado), são: serviços de educação, serviços de saúde, dispositivos médicos e de acessibilidade para pessoas com deficiência, medicamentos e produtos de cuidados básicos voltados à saúde menstrual, transporte coletivo, produtos agropecuários, alimentos para consumo humano, produtos para higiene pessoal, atividades artísticas e culturais nacionais.
Quanto à alíquota zero, esta se aplicará a um espectro reduzido de medicamentos e a produtos da cesta básica, conforme vierem a ser definidos pela legislação complementar.
Ainda que as hipóteses de aplicação da alíquota reduzida ou zero possam (devam) sofrer alguma extensão no Senado, o importante é que continuem circunscritas ao texto constitucional, o que evitará sua multiplicação incontrolável pelos entes federativos via legislação ordinária.
As exceções à alíquota padrão foram em grande parte inspiradas pelo nobre propósito de reduzir a carga tributária sobre a população mais pobre, a qual sofre um impacto maior com despesas com alimentação, saúde etc. Mas, como assinalado na própria exposição de motivos que acompanhou o substitutivo da PEC, um modelo de cashback do tributo para essa camada social poderia se mostrar mais eficiente, na medida em que teria foco direcionado, não alcançando a generalidade da população, o que permitiria, inclusive, que a alíquota padrão fosse mais baixa. Por isso, sem prejuízo dos redutores de alíquota, ficou aberta também essa possibilidade de restituição.
5. NÃO-CUMULATIVIDADE AMPLA
A PEC estabelece não-cumulatividade ampla: todos os bens e serviços adquiridos pelos contribuintes gerarão créditos, salvo aqueles de uso e consumo estritamente pessoal. Com isso, elimina-se a maior fonte de conflitos e litígios entre o fisco e os contribuintes, que gravita em torno de saber-se o que gera ou não gera créditos. Tanto no âmbito federal como no estadual, essa interminável controvérsia leva a um número gigantesco de consultas, lançamentos e autuações, bem como de processos administrativos e judiciais. Por isso, substituir essa colcha de retalhos normativa por uma regra clara, objetiva e abrangente é um dos principais ganhos com a reforma, especialmente para os setores industrial e comercial, que passarão a apropriar como créditos praticamente a totalidade de bens e serviços que adquirem de seus fornecedores.
Todavia, boa parte do setor de serviços não poderá fazer muito proveito dessa não-cumulatividade, uma vez que não é usuária intensiva de bens e serviços geradores de créditos: parcela significativa de seus custos está na folha de salários. É o que sucede na construção civil. E isso fica ainda mais patente no caso dos serviços profissionais, onde o maior "insumo" consiste na expertise adquirida pelo prestador. Daí que, sem dúvida, os prestadores de serviços serão, de forma geral, impactados negativamente pela reforma tributária. Como atenuar esse impacto? Via aplicação de alíquota reduzida ou reconhecimento de créditos presumidos, por exemplo.
De forma geral, o crédito será gerado em favor do adquirente pelo mero destaque do tributo no documento fiscal da operação. Mas ficou ressalvada a possibilidade, nos casos em que seja viável ao adquirente reter o valor do tributo devido pelo fornecedor, bem como nas hipóteses em que intermediários, como os gestores de meios de pagamento ou marketplaces, possam fazê-lo, de que o aproveitamento do crédito fique condicionado ao efetivo recolhimento do tributo destacado em nota. Como isso se fará é matéria que fica para a regulamentação por lei complementar.
A PEC enfrenta também o problema dos créditos acumulados. O acúmulo ocorre por várias razões, mas, de longe, a mais significativa é a imunidade em operações de exportação, nas quais o exportador, que tem direito a recuperar o tributo recolhido nas etapas antecedentes, acaba ficando com um encalhe de créditos. Para resolver a questão, cria um mecanismo de retenção temporária, pelo qual o tributo recolhido somente será repassado ao ente federativo após a efetiva compensação do crédito. Sem isso, a não-cumulatividade ampla acabaria se mostrando ilusória.
6. TRIBUTAÇÃO NO DESTINO
Atualmente, o ICMS em operações interestaduais é repartido entre o Estado de origem, que aplica a alíquota interestadual (7% ou 12%, conforme o caso) e o Estado de destino, que aplica o diferencial entre a sua alíquota interna e a alíquota interestadual, conhecido como DIFAL. Isso mudará (muito) paulatinamente com a entrada em vigor da reforma. Após um longo período de transição (que terminará em 2078), o IBS será devido exclusivamente ao ente federativo de destino. Assim, por exemplo, se um contribuinte estabelecido em Curitiba-PR realizar uma venda para Porto Alegre-RS, o IBS será repartido, conforme as alíquotas aplicáveis, entre o Município de Porto Alegre (alíquota municipal) e o Estado do Rio Grande do Sul (alíquota estadual).
A tributação no destino é o critério mais adequado aos tributos que incidem sobre o consumo, pois quem arca com o tributo é o consumidor no destino. Além disso, ela reduz o atrativo de guerra fiscal, pois, nas operações interestaduais, o imposto não ficará com o Estado onde se encontra instalado o empreendimento.
7. REGIMES ESPECIAIS
Em sua primeira versão, a PEC era mais refratária à preservação de regimes especiais, ou seja, que não se sujeitassem à incidência dos tributos não-cumulativos na forma acima exposta. Mas, como é natural em um debate democrático, exceções foram sendo enxertadas no projeto, com destaque para: serviços financeiros; negócios imobiliários (locação, venda, incorporação); planos de assistência à saúde; concursos de prognósticos; incidência monofásica sobre combustíveis; compras governamentais; Zona Franca de Manaus (e Amazônia Ocidental, Macapá e Santana); e, principalmente, Simples Nacional. Essas exceções manterão os regimes existentes, com algumas adaptações, caso da ZFM e do Simples Nacional, ou serão objeto ainda de futura modelagem (serviços financeiros e negócios imobiliários).
No que diz respeito ao Simples Nacional, a PEC prevê que as microempresas e as empresas de pequeno porte optantes poderão recolher a dupla CBS/IBS fora desse regime, permanecendo com os demais tributos dentro (imposto de renda, contribuição social sobre o lucro e contribuição sobre a folha de salários). Caso não o façam, não poderão apropriar créditos no regime não-cumulativo, mas o valor do CBS/IBS recolhido dentro do Simples Nacional gerará crédito para os adquirentes de bens e serviços fornecidos pela empresa enquadrada no regime.
8. LEGISLAÇÃO HARMONIZADA
Aspecto fundamental da reforma é a harmonização legislativa. Deveras, de pouco adiantaria estabelecer regras constitucionais sobre os novos tributos se Estados e Municípios permanecessem livres para,cada qual à sua maneira, disciplinar os novos tributos, como acontece atualmente: muito em breve, o cenário caótico seria reinstalado sob novas vestes. Por isso mesmo, previu-se que caberá à lei complementar regular o mais exaustivamente possível o IBS, indo muito além das regras gerais atualmente existentes. Restará aos Estados e Municípios o estabelecimento das alíquotas aplicáveis no seu âmbito de competência territorial.
Acresce que a legislação da CBS seguirá os mesmos lineamentos e critérios da do IBS, dentro da ideia de que serão tributos gêmeos, separados apenas pela atribuição do valor arrecadado a distintos entes federativos: aquela, à União; este, aos Estados e Municípios.
9. COORDENAÇÃO DA GESTÃO TRIBUTÁRIA
Mas não apenas a legislação, também a gestão tributária será uniformizada. Para tanto, a PEC cria o Conselho Federativo, a quem competirá pôr ordem na multiplicidade de obrigações acessórias, procedimentos e processos administrativos voltados à apuração, fiscalização e recolhimento do IBS, consultas e interpretações etc. E aí está, de par com a harmonização legislativa, um dos principais ganhos para os contribuintes, que deixarão de se sujeitar a um número incontável de regramentos e práticas díspares e conflitantes, para, em seu lugar, submeter-se a regras e intepretações uniformes em todo o território nacional.
A questão ainda controversa quanto ao Conselho diz respeito ao peso dos entes federativos no processo decisório. Na Câmara, definiu-se que haverá uma combinação, na composição do Conselho e nas deliberações por ele tomadas, entre critério igualitário e critério ponderado pela população dos entes, mas há muita pressão para que isso seja alterado no Senado, onde a representação dos Estados é paritária.
10. TRANSIÇÃO DO VELHO PARA O NOVO
Naturalmente, não há como virar a chave de um regime para outro de imediato. Daí a necessidade de se estabelecer dois regimes de transição: um mais breve para a entrada em vigor da CBS; outro mais longo para a substituição do ICMS e do ISS pelo IBS.
A transição para a CBS ocorrerá entre 2026 e 2027. No primeiro ano, mantidos PIS, COFINS e IPI, será adotada uma alíquota de teste de 0,9% para a CBS, e o valor arrecadado com essa contribuição será compensado com o valor dos tributos ainda vigentes, sem aumento da carga tributária. No ano seguinte, será estabelecida, pelo Senado Federal, a partir da calibragem da alíquota de teste, a chamada alíquota de referência da CBS, com extinção dos tributos que substituirá. A alíquota de referência deverá garantir, na transição, neutralidade arrecadatória, sem aumento e sem redução da carga tributária.
Já a transição para o IBS será mais complexa, pois compreenderá não apenas a mudança dos tributos existentes (ICMS e ISS) para aquele, mas também a forma de sua distribuição entre os entes federativos (da partilha entre origem e destino para a atribuição integral do tributo ao Estado de destino). A migração dos tributos terá início em 2029 (embora uma alíquota teste de 0,1% seja aplicada em 2026 juntamente com a alíquota teste da CBS). A partir daí e até 2032, as alíquotas do ICMS e do ISS serão reduzidas anualmente em 1/10, com aumento, em contrapartida, da alíquota do IBS. Em 2033, serão extintos o ICMS e o ISS, e incidirá a alíquota de referência do IBS, fixada pelo Senado em patamar neutro (nem aumenta nem reduz a carga tributária). A alíquota de referência poderá, na sequência, ser substituída pelas alíquotas fixadas pelos Estados e Municípios (lembrando que essa fixação é uma das únicas competências que ficaram preservadas para esses entes federativos). Os créditos acumulados de ICMS, que representam mais de centena de bilhão de reais, poderão ser, daí em diante, utilizados em suaves 240 parcelas para pagamento do IBS.
A mudança da tributação para o destino será ainda mais suave. Entre 2029 e 2035, 10% da carga da origem será transferida para o destino; daí em diante, até 2078, a redução ocorrerá à proporção de 1/45 ao ano.
Ademais, para amortecer os impactos nos entes federativos, serão criados dois fundos: Fundo de Desenvolvimento Regional e Fundo de Compensação, este para atenuar o fim da guerra fiscal.
11. GANHOS E PERDAS
Sob a perspectiva da simplificação do sistema tributário, todos ganham, tanto entes federativos como contribuintes. Sem qualquer dúvida, a dupla CBS/IBS substituirá com grande vantagem os complexos atuais tributos sobre o consumo, quer em razão de se adotar a não-cumulatividade plena, quer, principalmente, pela substituição da multiplicidade de leis estaduais e municipais por uma única legislação complementar de âmbito nacional, quer, finalmente, pela padronização, via Conselho Confederativo, de obrigações acessórias a cargo dos contribuintes e dos procedimentos a serem adotados na apuração e fiscalização do novo tributo.
Porém, no que diz respeito à carga tributária, isso não se repete. A tese de que, no período de transição, não haverá mudança dessa carga até poderá corresponder à verdade no nível macro, ou seja, considerando-se, de forma indiferenciada, a totalidade dos contribuintes. Mas, pelo já exposto, sob a perspectiva setorial, o cenário é outro. Os setores industrial e comercial poderão até ser beneficiados, na medida em que, sujeitando-se a alíquotas similares às atuais, terão direito amplo ao aproveitamento de créditos, sem as restrições que tantas controvérsias geraram nas últimas décadas. Ao contrário, o setor de serviços verá o ISS, cuja alíquota máxima é de 5%, ser substituído pelo IBS, e o regime cumulativo de PIS-COFINS, com alíquota de 3,65%, ser extinto, dando lugar à CBS não-cumulativa, com significativo aumento de alíquota (que girará em torno dos 25%), e poucas possibilidades de aproveitamento de créditos, especialmente nas atividades intensivas em mão de obra (construção civil) e nas de natureza profissional. Por isso, atenuar essa disparidade é uma das principais questões a serem tratadas durante o trâmite da PEC no Senado.
12. DEMAIS TRIBUTOS
A reforma não se limita à introdução da dupla CBS/IBS. Além disso:
- Cria um imposto seletivo - IS, de competência da União, o qual, supostamente, terá somente finalidades extrafiscais, atingindo apenas bens e serviços que possam trazer prejuízos à saúde (fumo e bebidas alcoólicas) e ao meio-ambiente (combustíveis);
- Autoriza a progressividade do imposto sobre transferência causa mortis e doações - ITCMD, que poderá ter alíquotas distintas de acordo com o valor do patrimônio deixado pelo de cujus ou do bem doado - ou seja, quanto maior o patrimônio, tanto maior a alíquota;
- Possibilita a incidência de imposto sobre propriedade de veículos automotores - IPVA relativamente a embarcações de passeio e aeronaves particulares, excluídos as utilizadas na prestação de serviços de transporte de pessoas ou de cargas;
- Também em relação ao IPVA, permite sua incidência progressiva de acordo com o menor ou maior consumo de combustíveis do veículo;
- Quanto ao imposto sobre propriedade territorial urbana - IPTU, faculta a atualização de sua base de cálculo por mero decreto, desde que os critérios para essa atualização estejam previstos em lei;
- Por fim, estabelece que, em até 180 dias a contar da promulgação da PEC, o Executivo apresentará projeto de reforma do imposto de renda.
13. PRÓXIMOS PASSOS
Aprovada na Câmara, a PEC já se encontra no Senado, em andamento perante a Comissão de Constituição e Justiça - CCJ. É bastante provável que, ao longo desse trâmite, sofra novas alterações. De um lado, o governo busca eliminar algumas das exceções à incidência da dupla CBS/IBS, o que permitiria, segundo diz, a fixação de alíquotas num patamar mais baixo. De outro, os setores impactados negativamente pretendem mitigar esse impacto, criando novas exceções além das já previstas em matéria de alíquotas e regimes diferenciados, ou estabelecendo mecanismos que permitam, por exemplo, o aproveitamento de créditos presumidos para atividades que não aproveitam créditos efetivos. O resultado dessas pressões em direções opostas dependerá, é claro, de negociações e composições em curso.
Seja como for, e com a importantíssima ressalva de que é preciso resolver a situação do setor de serviços (especialmente, construção civil e serviços profissionais), que está ficando com a conta, a reforma avança na direção certa e representa uma significativa evolução de nosso sistema tributário, merecendo ser aprovada.
Leonardo Sperb de Paola
Advogado | Mestre e Doutor em Direito
Sócio do escritório De Paola & Panasolo Advogados.