publicado em 29/09/2023
CRÉDITO TRIBUTÁRIO E FRAUDE À EXECUÇÃO - CRITÉRIOS PARA DUE DILIGENCE
Ricardo Campelo
Resumo: O presente artigo realiza uma análise do instituto da fraude à execução por crédito tributário em face do vendedor de bens inscrito em dívida ativa, especialmente em casos de alienações sucessivas, a fim de avaliar qual a extensão de uma due diligence a ser realizada pelo adquirente.
Palavras-chave: Tributário. Fraude à Execução. Execução fiscal. Crédito Tributário. Dívida Ativa. Concentração dos atos na matrícula. Certidão negativa. Alienações sucessivas. Segurança jurídica. Due diligence.
Sumário. Introdução. 1 Fraude à Execução. 2 Peculiaridade em relação ao crédito tributário. 3 Alienações sucessivas e o princípio da segurança jurídica. 4 Concentração dos atos na matrícula. 5 Critérios para due diligence. Conclusões. Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
A discussão em torno do instituto da fraude à execução, bem assim da fraude contra credores, é bastante antiga no Brasil, e se encontra longe de uma pacificação, mesmo com sucessivas alterações da legislação.
No sentido de favorecer a proteção do terceiro de boa-fé adquirente de bens, foi editada a Lei nº 13.097/2015, que positivou o princípio da concentração dos atos na matrícula, corroborado com as alterações promovida pela Lei nº 14.382/2022.
Em se tratando de crédito tributário, todavia, a vantagem está com o credor, já que a Lei Complementar nº 118/2005 alterou o art. 185 do Código Tributário Nacional a fim de estabelecer que a alienação do bem é presumida como fraudulenta caso o vendedor tenha contra si créditos tributários inscritos em dívida ativa.
A jurisprudência sobre o tema é bastante complexa, até mesmo em face das mudanças de circunstâncias em face de cada caso concreto.
O tema voltou a ser objeto de debates a partir de maio de 2023, quando o Superior Tribunal de Justiça proferiu decisão no Recurso Especial nº 1.820.873, em que ratificou o entendimento de que há fraude à execução no caso de alienação de bem por devedor tributário com crédito inscrito em dívida ativa. No caso, o imóvel fora alienado sucessivamente, de modo que a decisão atingiu não aquele que adquiriu o imóvel diretamente do devedor, e sim um terceiro, que havia realizado a devida verificação das certidões do vendedor direto.
As implicações deste julgamento, em especial com relação às providências a serem tomadas pelo adquirente de imóveis, é o que pretendemos abordar no presente artigo.
1 A FRAUDE À EXECUÇÃO
A disciplina legal da fraude à execução vem com o sentido de combater atos praticados pelo devedor com a intenção de dilapidar patrimônio em prejuízo do credor. A respeito, ensinam Fredie Didier Jr., Carneiro da Cunha, Braga e Oliveira:
"A fraude à execução é manobra do devedor que causa dano não apenas ao credor (como na fraude pauliana), mas também à atividade jurisdicional executiva. Trata-se de instituto tipicamente processual.
É considerada mais grave do que a fraude contra credores, vez que cometida no curso de processo judicial, executivo ou apto a ensejar futura execução, frustrando os seus resultados. Isso deixa evidente o intuito de lesar o credor, a ponto de ser tratada com mais rigor pelo legislador."
O instituto é disciplinado no Brasil, atualmente, no artigo 792 do Código de Processo Civil de 2015, que assim estabelece, prestigiando a redação do caderno processual de 1973:
"Art. 792. A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:
I - quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver;
II - quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828;
III - quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude;
IV - quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência;
V - nos demais casos expressos em lei.
§ 1º A alienação em fraude à execução é ineficaz em relação ao exequente.";
Note-se que o § 1º determina a ineficácia da alienação em face do credor, que pode obter a constrição do bem para a satisfação da dívida, em exceção à regra geral de que somente os bens do devedor respondem por suas obrigações (art. 789 do mesmo diploma).
A evolução da interpretação do instituto pelo Superior Tribunal de Justiça levou à edição da Súmula nº 375, de 30/03/2009, segundo a qual:
"Súmula 375 - O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente."
Ou seja, restou consagrado o critério segundo o qual o reconhecimento da fraude depende do registro da penhora perante a matrícula do imóvel. Ausente tal registro, somente haverá configuração da fraude à execução caso se comprove que o adquirente tinha conhecimento da ação judicial em referência ou estava em conluio com o devedor.
Posteriormente, o STJ viria a definir que não somente o registro de penhora seria suficiente para a caracterização da fraude à execução, mas também a mera averbação da pendência do processo:
"(...)
presunção essa que também é aplicável à hipótese na qual o credor providenciou a averbação, à margem do registro, da pendência de ação de execução (art. 615-A, § 3º, do CPC/73; art. 828, § 4º, do CPC/2015)." (STJ - REsp: 1863999 SP 2020/0048011-4, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 03/08/2021, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 09/08/2021)
Portanto, compreende-se como elemento fundamental da fraude à execução a existência de ação judicial publicizada na matrícula do imóvel, ou a comprovação da ausência de boa-fé por parte do comprador.
De outro lado, importante anotar que a boa-fé protegida, no caso, é a de natureza objetiva, como ensina Daniel Cardoso Gomes[1]:
"Para alegação de boa-fé, não parece restar dúvida de que aquela aplicável é a objetiva, que importa em critérios mais objetivos para analisarmos a conduta do adquirente, não dando espaço para dúvidas ou interpretações subjetivas relacionadas à sua impressão de fazer o correto. Nesse caso, precisaremos da comprovação de que aquele comprador, naquilo que estava ao seu alcance, adotou as cautelas necessárias para a comprovação de segurança jurídica de sua aquisição."
Esse é o entendimento que o Superior Tribunal de Justiça consagrou a respeito da boa-fé do adquirente, valendo citar, a respeito:
"2. Na alienação de imóveis litigiosos, ainda que não haja averbação dessa circunstância na matrícula, subsiste a presunção relativa de ciência do terceiro adquirente acerca da litispendência, pois é impossível ignorar a publicidade do processo, gerada pelo seu registro e pela distribuição da petição inicial, nos termos dos arts. 251 e 263 do CPC. Diante dessa publicidade, o adquirente de qualquer imóvel deve acautelar-se, obtendo certidões dos cartórios distribuidores judiciais que lhe permitam verificar a existência de processos envolvendo o comprador, dos quais possam decorrer ônus (ainda que potenciais) sobre o imóvel negociado.
3. Cabe ao adquirente provar que desconhece a existência de ação envolvendo o imóvel, não apenas porque o art. 1.º, da Lei n.º 7.433/85, exige a apresentação das certidões dos feitos ajuizados em nome do vendedor para lavratura da escritura pública de alienação, mas, sobretudo, porque só se pode considerar, objetivamente, de boa-fé o comprador que toma mínimas cautelas para a segurança jurídica da sua aquisição." (STJ - RMS: 27358 RJ 2008/0159701-3, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 05/10/2010, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 25/10/2010 - destacamos)
Assim, fica realçada a importância de cautelas por parte do adquirente de imóvel, em relação à situação jurídica do bem e à condição econômica do devedor, de que voltaremos a tratar adiante.
2. PECULIARIDADE EM RELAÇÃO AO CRÉDITO TRIBUTÁRIO
A par das considerações acima apresentadas sobre a disciplina da fraude à execução, fato é que o crédito tributário possui tratativa especial. É que a Lei Complementar nº 108, de 2005, promoveu alteração ao art. 185 do Código Tributário Nacional, que recebeu a seguinte redação:
Art. 185. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa. (Redação dada pela Lcp nº 118, de 2005)
Com efeito, a legislação passou a estabelecer uma situação em que não há espaço para discussão sobre a boa-fé do adquirente, e tampouco se exige a anotação de penhora ou da existência da ação na matrícula do imóvel.
Basta haver crédito tributário em face do vendedor do imóvel, com a devida inscrição em dívida ativa, que a negociação do imóvel será presumida como realizada em fraude à execução. A presunção pode ser afastada na hipótese descrita no parágrafo único do mesmo dispositivo, verbis:
Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica na hipótese de terem sido reservados, pelo devedor, bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida inscrita.
É dizer, havendo inscrição do débito em dívida ativa, a presunção de fraude à execução somente será elidida em caso de o vendedor possuir patrimônio remanescente suficiente para fazer frente a suas dívidas, assegurando-se, assim, a ausência de prejuízos a eventuais credores.
A vigência do referido dispositivo causou mudança relevante na aplicação da fraude à execução em se tratando de crédito tributário. Em 2010, o Superior Tribunal de Justiça proferiu decisão em sede de recursos repetitivos, confirmando a prevalência do novo conteúdo do art. 185 do Código Tributário Nacional sobre a tese da Súmula nº 375:
"PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C, DO CPC. DIREITO TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE TERCEIRO. FRAUDE À EXECUÇÃO FISCAL. ALIENAÇÃO DE BEM POSTERIOR À CITAÇÃO DO DEVEDOR. INEXISTÊNCIA DE REGISTRO NO DEPARTAMENTO DE TRÂNSITO - DETRAN. INEFICÁCIA DO NEGÓCIO JURÍDICO. INSCRIÇÃO EM DÍVIDA ATIVA. ARTIGO 185 DO CTN, COM A REDAÇÃO DADA PELA LC N.º 118/2005. SÚMULA 375/STJ. INAPLICABILIDADE.
1. A lei especial prevalece sobre a lei geral (lex specialis derrogat lex generalis), por isso que a Súmula n.º 375 do Egrégio STJ não se aplica às execuções fiscais.
(...)
3. A Lei Complementar n.º 118, de 9 de fevereiro de 2005, alterou o artigo 185, do CTN, que passou a ostentar o seguinte teor: "Art. 185. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa. Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica na hipótese de terem sido reservados, pelo devedor, bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida inscrita."
4. Consectariamente, a alienação efetivada antes da entrada em vigor da LC n.º 118/2005 (09.06.2005) presumia-se em fraude à execução se o negócio jurídico sucedesse a citação válida do devedor; posteriormente à 09.06.2005, consideram-se fraudulentas as alienações efetuadas pelo devedor fiscal após a inscrição do crédito tributário na dívida ativa.
9. Conclusivamente: (a) a natureza jurídica tributária do crédito conduz a que a simples alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, pelo sujeito passivo por quantia inscrita em dívida ativa, sem a reserva de meios para quitação do débito, gera presunção absoluta (jure et de jure) de fraude à execução (lei especial que se sobrepõe ao regime do direito processual civil); (b) a alienação engendrada até 08.06.2005 exige que tenha havido prévia citação no processo judicial para caracterizar a fraude de execução; se o ato translativo foi praticado a partir de 09.06.2005, data de início da vigência da Lei Complementar n.º 118/2005, basta a efetivação da inscrição em dívida ativa para a configuração da figura da fraude; (c) a fraude de execução prevista no artigo 185 do CTN encerra presunção jure et de jure, conquanto componente do elenco das "garantias do crédito tributário"; (d) a inaplicação do artigo 185 do CTN, dispositivo que não condiciona a ocorrência de fraude a qualquer registro público, importa violação da Cláusula Reserva de Plenário e afronta à Súmula Vinculante n.º 10, do STF.
10. In casu, o negócio jurídico em tela aperfeiçoou-se em 27.10.2005, data posterior à entrada em vigor da LC 118/2005, sendo certo que a inscrição em dívida ativa deu-se anteriormente à revenda do veículo ao recorrido, porquanto, consoante dessume-se dos autos, a citação foi efetuada em data anterior à alienação, restando inequívoca a prova dos autos quanto à ocorrência de fraude à execução fiscal. 11. Recurso especial conhecido e provido. Acórdão submetido ao regime do artigo 543-C do CPC e da Resolução STJ n.º 08/2008." (STJ - REsp: 1141990 PR 2009/0099809-0, Relator: Ministro LUIZ FUX, Data de Julgamento: 10/11/2010, S1 - PRIMEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 19/11/2010 RT vol. 907 p. 583 - destacamos)
Cumpre notar que a Corte considerou o status do Código Tributário Nacional como lei especial, que prevaleceria, portanto, sobre a legislação processual civil que disciplina de forma geral o instituto da fraude à execução.
A partir deste julgamento, firmou a seguinte para o Tema nº 290:
"Se o ato translativo foi praticado a partir de 09.06.2005, data de início da vigência da Lei Complementar n.º 118/2005, basta a efetivação da inscrição em dívida ativa para a configuração da figura da fraude."
Fato é, portanto, que restou consolidado o cenário em que o débito tributário do devedor, com inscrição em dívida ativa a partir de 08/06/2005, implica em presunção de fraude à execução, impondo cautelas redobradas em relação às conferências a serem adotadas pelo adquirente de imóveis.
3. ALIENAÇOES SUCESSIVAS E O PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA
Voltando ao estudo da fraude à execução como regra geral, e não apenas no que se refere ao crédito tributário, a jurisprudência historicamente resguardou tratamento diferenciado ao adquirente de imóvel nas chamadas ‘alienações sucessivas’, ou seja, quando o pleito de ineficácia se origina por conta de débito não do vendedor imediato, mas daquele que realizou venda anterior na cadeia de transações.
Sustentando este entendimento, assim decidiu o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial nº 218.290/SP:
"PROCESSUAL CIVIL - EMBARGOS DE TERCEIRO - FRAUDE CONTRA CREDORES - TERCEIRO DE BOA-FÉ QUE NÃO ADQUIRIU O BEM DIRETO DO DEVEDOR EXECUTADO - MATÉRIA DE PROVA - RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO.
I - Inexistente, no caso concreto, violação ao art. 535 do CPC. O acórdão recorrido apreciou a controvérsia sob todos os pontos relevantes, argumentando que, se houve eventual fraude contra credores, a discussão deve ser objeto de ação pauliana adequada, o que está em consonância com a jurisprudência desta Corte, cristalizada no enunciado n.º 195/STJ.
II - No mais, pretende o recorrente provar a existência de fraude à execução, tese rechaçada pelas instâncias ordinárias, com base na prova dos autos, insuscetível sua revisão, em sede de Especial, a teor da Súmula 7/STJ. Segundo Jurisprudência dominante neste STJ, para a caracterização da fraude de execução é preciso que a alienação tenha ocorrido depois da citação válida, devendo este ato estar devidamente inscrito no registro ou que fique provado que o adquirente sabia da existência da ação. No caso concreto, saliente-se que os embargantes não adquiriram o imóvel do próprio devedor, mas de terceiro, presumindo-se sua boa-fé, até porque, sequer execução existia.
III - Recurso não conhecido." (STJ - REsp: 218290 SP 1999/0050149-7, Relator: Ministro WALDEMAR ZVEITER, Data de Julgamento: 11/04/2000, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: --> DJ 26/06/2000 p. 161 - destacamos)
Ou seja, temperando o entendimento consagrado de que a boa-fé do adquirente depende da adoção das cautelas de checagem necessária em relação à situação do imóvel e do vendedor, reconheceu-se que não seria razoável exigir que esta conferência se estendesse aos vendedores anteriores da cadeia dominial.
Em importante julgamento realizado no Recurso Especial nº 1.863.999/SP, o STJ acrescentou detalhes ao entendimento firmado:
"PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE TERCEIRO. FRAUDE À EXECUÇÃO. ALIENAÇÕES SUCESSIVAS. EXTENSÃO AUTOMÁTICA DA INEFICÁCIA DA PRIMEIRA ALIENAÇÃO ÀS TRANSAÇÕES SUBSEQUENTES. IMPOSSIBILIDADE. JULGAMENTO: CPC/2015.
(...)
4. As hipóteses em que a alienação ou oneração do bem são consideradas fraude à execução podem ser assim sintetizadas: (i) quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória; (ii) quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução; (iii) quando o bem tiver sido objeto de constrição judicial nos autos do processo no qual foi suscitada a fraude; (iv) quando, no momento da alienação ou oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência (art. 593 do CPC/73 e art. 792 do CPC/2015).
(...)
8. Em caso de alienações sucessivas, inicialmente, é notório que não se exige a pendência de processo em face do alienante do qual o atual proprietário adquiriu o imóvel. Tal exigência, em atenção aos ditames legais (art. 593 do CPC/73 e art. 792 do CPC/2015), deve ser observada exclusivamente em relação ao devedor que figura no polo passivo da ação de conhecimento ou de execução. É dizer, a litispendência é pressuposto a ser analisado exclusivamente com relação àquele que tem relação jurídica com o credor.
9. No que concerne ao requisito do registro da penhora ou da pendência de ação ou, então, da má-fé do adquirente, o reconhecimento da ineficácia da alienação originária, porque realizada em fraude à execução, não contamina, automaticamente, as alienações posteriores. Nessas situações, existindo registro da ação ou da penhora à margem da matrícula do bem imóvel alienado a terceiro, haverá presunção absoluta do conhecimento do adquirente sucessivo e, portanto, da ocorrência de fraude. Diversamente, se inexistente o registro do ato constritivo ou da ação, incumbe ao exequente/embargado a prova da má-fé do adquirente sucessivo.
10. No particular, o imóvel não foi adquirido pelos recorridos (embargantes) diretamente dos executados, mas sim de terceiro que o comprou destes. Embora tenha sido reconhecida a fraude na primeira alienação, isto é, dos executados ao adquirente primitivo, o quadro fático delineado na origem revela que a credora não havia procedido à averbação, na matrícula do imóvel, da pendência de execução, tampouco se desincumbiu de comprovar a má-fé dos adquirentes posteriores; isto é, de que eles tinham conhecimento da existência de ação capaz de reduzir o devedor à insolvência. Não há que se falar, assim, em ineficácia da alienação subsequente.
(...)(STJ - REsp: 1863999 SP 2020/0048011-4, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 03/08/2021, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 09/08/2021 - destacamos)
Do voto da MM. Ministra Relatora, válido destacar:
"31. Diante dessas considerações, atentando-se à jurisprudência desta Corte, em homenagem à segurança jurídica, tem-se que é essencial distinguir dois cenários:
1) Existindo registro da ação ou da penhora à margem da matrícula do bem imóvel alienado a terceiro, haverá presunção absoluta do conhecimento do adquirente sucessivo e, portanto, da ocorrência de fraude. Desse modo, caso declarada a ineficácia da transação realizada entre o devedor/executado e o adquirente primário, as alienações posteriores também serão ineficazes.
2) Se inexistente o registro do ato constritivo ou da ação, incumbe ao exequente/embargado a prova da má-fé do adquirente sucessivo. Em outros termos, ainda que a alienação do bem pelo devedor/executado ao primeiro comprador tenha sido praticada em fraude à execução, as alienações sucessivas não serão automaticamente ineficazes. A sua ineficácia perante o credor/exequente dependerá da demonstração de que o adquirente posterior (embargante) tinha conhecimento da pendência de ação contra o alienante primário." (destaque nosso)
Portanto, resta claro que o STJ consagrou a proteção ao adquirente de boa-fé em caso de alienações sucessivas, impondo, para a caracterização da fraude à execução, a prova de que aquele teria conhecimento da existência de execução ou ação em face do vendedor anterior.
Este entendimento chegou a ser aplicado pelas cortes brasileiras até mesmo para casos em que o débito discutido era de natureza tributária, constituído em dívida ativa após a vigência da Lei Complementar nº 108/2005. Neste sentido, vale citar, do Egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região:
"PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE TERCEIRO. IMÓVEL. ALIENAÇÕES SUCESSIVAS. SEGURANÇA JURÍDICA DO NEGÓCIO. ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA. APRESENTAÇÃO DAS CERTIDÕES NEGATIVAS DO ÚLTIMO VENDEDOR. CAUTELAS NECESSÁRIAS. COMPROVAÇÃO. SEGURANÇA JURÍDICA DO NEGÓCIO. RECURSO REPETITIVO RESP. 1.141.990/PR. TEMA STJ Nº 290. NÃO APLICABILIDADE EM RAZÃO DAS PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO. (...)
(...)
3. O terceiro embargante observou todas as cautelas ordinariamente exigidas nessa espécie de negócio (compra de bem imóvel), constando expressamente na Escritura Pública de Compra e Venda o rol necessário das certidões negativas, inclusive a de Tributos Federais do último proprietário do imóvel. 4. A decisão judicial que decretou fraude à execução fiscal não pode produzir efeitos em relação ao último adquirente de imóvel quando este comprou o bem em segunda alienação desembaraçado de qualquer ônus no registro imobiliário, não havendo demanda capaz de conduzir o alienante à insolvência, e, também, quando a Fazenda Pública não comprovou a negligência ou má-fé do último comprador. 5. Sendo o imóvel sujeito a registro, deve a Fazenda Pública apurar a existência de alienações posteriores, requerendo a necessária integração de terceiros à lide, para estender a estes os efeitos da decretação da fraude à execução. Caso não providenciada a integração de terceiros à lide, a projeção 'extra' autos dos efeitos da decisão dependerá de demonstração, pela Fazenda Pública, da má-fé ou negligência dos posteriores adquirentes do bem, nas alienações onerosas supervenientes, devendo prevalecer, se não houver tal demonstração, o princípio da boa-fé. 6. Se houver alienações sucessivas, a presunção de boa-fé favorece os posteriores adquirentes. Assim deve ser interpretado o art. 185 do CTN. Não se pode atribuir ao crédito tributário privilégio que vai além daqueles expressamente previstos na legislação tributária. 7. Uma vez que a parte embargante não adquiriu o imóvel diretamente do devedor/executado, mas de terceira pessoa que havia adquirido daquele, e ausentes provas de que tivesse conhecimento efetivo ou presuntivo da existência de demanda capaz de levar o devedor/executado à insolvência, não há como subsistir o reconhecimento de ocorrência de fraude à execução, sob pena de se desprestigiar a segurança dos negócios jurídicos. 8. Analisando detalhadamente os documentos anexados à inicial, bem como levando em conta o entendimento desta Turma, em que no caso de alienações sucessivas de imóveis, não é razoável exigir do último comprador que investigue toda a cadeia dominial do imóvel, em busca de certidões negativas dos proprietários anteriores, sendo suficiente que a última compra tenha seguido todos os trâmites legais, o que no caso ocorreu, tenho que não houve fraude à execução. 9. Sentença mantida." (TRF-4 - AC PR 5004044-09.2016.404.7003, Relatora Des. Luciane Amaral Corrêa Münch, Data de Julgamento: 27/06/2017, Segunda Turma - Destacamos)
Pode se notar que o Tribunal Regional considerou o mesmo fundamento adotado pelo STJ na discussão envolvendo créditos não-tributários, privilegiando a boa-fé do adquirente mesmo sobre a regra de presunção estabelecida no art. 185 do Código Tributário Nacional.
Não obstante, a discussão ganhou contornos diversos ao chegar no Superior Tribunal de Justiça. De fato, a Segunda Turma da Corte Superior, em 2019, proferiu acórdão entendendo pela aplicação do disposto no art. 185 do Código Tributário Nacional mesmo em caso de alienações sucessivas, verbis:
"PROCESSUAL CIVIL. OFENSA AO ART. 1.022 DO CPC/2015 NÃO DEMONSTRADA. EXECUÇÃO FISCAL. EFICÁCIA VINCULATIVA DO ACÓRDÃO PROFERIDO NO RESP 1.141.990/PR. ALIENAÇÃO DO BEM APÓS A INSCRIÇÃO EM DÍVIDA ATIVA. FRAUDE À EXECUÇÃO CONFIGURADA. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA 375/STJ. PRESUNÇÃO ABSOLUTA FRAUDE À EXECUÇÃO.
(...) 3. Considera-se fraudulenta a alienação, mesmo quando há transferências sucessivas do bem, feita após a inscrição do débito em dívida ativa, sendo desnecessário comprovar a má-fé do terceiro adquirente. (...).
4. A lei especial, o Código Tributário Nacional, se sobrepõe ao regime do Direito Processual Civil, não se aplicando às Execuções Fiscais o tratamento dispensado à fraude civil, diante da supremacia do interesse público, já que o recolhimento dos tributos serve à satisfação das necessidades coletivas. Inaplicável às Execuções Fiscais a interpretação consolidada na Súmula 375/STJ: "O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente".
5. No presente caso, acórdão recorrido consignou que a primeira alienação do bem pelo executado ocorreu em antes da entrada em vigor da Lei Complementar 118/2005 e que a data da citação ocorreu em 20/08/2002, tendo havido sucessivas alienações até a transmissão à ora recorrida. É patente, portanto, a configuração da fraude à execução." (...) (STJ - REsp: 1.833.644 PB 2019/0250866-2, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 08/10/2019, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 18/10/2019)
Válido observar que no caso em questão, havia execução fiscal distribuída, com a correspondente citação, em face do devedor (vendedor primário), fator relevante, tendo em vista que a alienação ocorreu antes da vigência da Lei Complementar nº 108/2005. Porém, fato é que a ratio decidendi que determinou o resultado do julgamento considerou a especialidade da lei tributária, a prevalecer sobre a legislação processual civil, caracterizando a fraude à execução ainda que se tratasse de alienações sucessivas.
Em decisão mais recente, de abril de 2023, a Primeira Turma do STJ viria a ratificar esta posição, em julgamento que ganhou bastante repercussão, assim ementado:
"TRIBUTÁRIO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE TERCEIRO. FRAUDE À EXECUÇÃO. NEGÓCIO REALIZADO APÓS A INSCRIÇÃO EM DÍVIDA ATIVA. PRESUNÇÃO ABSOLUTA. BOA-FÉ DE TERCEIRO ADQUIRENTE. IRRELEVÂNCIA. MATÉRIA DECIDIDA EM RECURSO REPETITIVO. EXCEÇÃO DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 185 DO CTN. VERIFICAÇÃO. NECESSIDADE. ACÓRDÃO RECORRIDO EM DESCONFORMIDADE COM O ENTENDIMENTO DESTA CORTE.
1. Tendo sido o recurso interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015, devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade na forma nele previsto, conforme Enunciado n. 3/2016/STJ.
2. A Primeira Seção, no julgamento do REsp 1.141.990/PR, realizado na sistemática dos recursos repetitivos, decidiu que "a alienação efetivada antes da entrada em vigor da LC n.º 118/2005 (09.06.2005) presumia-se em fraude à execução se o negócio jurídico sucedesse a citação válida do devedor; posteriormente a 09.06.2005, consideram-se fraudulentas as alienações efetuadas pelo devedor fiscal após a inscrição do crédito tributário na dívida ativa".
3. Nesse contexto, não há porque se averiguar a eventual boa-fé do adquirente, se ocorrida a hipótese legal caracterizadora da fraude, a qual só pode ser excepcionada no caso de terem sido reservados, pelo devedor, bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida inscrita.
4. Esse entendimento se aplica também às hipóteses de alienações sucessivas, daí porque "considera-se fraudulenta a alienação, mesmo quando há transferências sucessivas do bem, feita após a inscrição do débito em dívida ativa, sendo desnecessário comprovar a má-fé do terceiro adquirente" (REsp 1.833.644/PB, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 18/10/2019)
5. No caso concreto, o órgão julgador a quo decidiu a controvérsia em desconformidade com a orientação jurisprudencial firmada por este Tribunal Superior, porquanto afastou a hipótese legal caracterizadora de fraude em atenção à boa-fé do terceiro adquirente.
6. Não obstante, remanesce a possibilidade de o negócio realizado não implicar fraude, acaso ocorrida a hipótese do parágrafo único do art. 185 do CTN. Assim, os autos devem retornar ao Tribunal Regional Federal para novo julgamento, afastada a tese de boa-fé do terceiro adquirente.7. Agravo interno não provido." (STJ - AgInt no REsp: 1820873 RS 2019/0172341-2, Relator: BENEDITO GONÇALVES, Data de Julgamento: 25/04/2023, T1, Data de Publicação: DJe 23/05/2023 - destacamos)
O Tribunal consagrou, portanto, o entendimento de que, após a entrada em vigor da Lei Complementar nº 108/2005, que deu nova redação ao art. 185 do Código Tributário Nacional, a fraude à execução resta caracterizada pela simples inscrição do crédito tributário em dívida ativa, mesmo que em prejuízo a terceiro que adquiriu o imóvel após alienações sucessivas.
Assim, o STJ determinou a baixa dos autos para a instância a quo para novo julgamento, a fim de se verificar eventual exceção com base no parágrafo único do art. 185, caso o devedor tivesse preservado, quando da alienação do imóvel, patrimônio suficiente para fazer frente a suas dívidas.
A nosso ver, o entendimento para o qual converge o Tribunal Superior é bastante temerário e com nefastos efeitos práticos.
Com efeito, uma questão de tamanha relevância e com intensa repercussão para as relações civis merecia um debate mais aprofundado, considerando outros fundamentos que não a mera prevalência da lei especial sobre a lei geral.
Reiteradas vênias, a hermenêutica jurídica demanda a consideração não somente das regras do direito positivo, mas dos princípios que gerais que de Direito.
No caso em discussão, não há dúvidas de que a tese sufragada pelo STJ acaba por enfraquecer princípios jurídicos fundamentais, em especial o da segurança jurídica, noutras oportunidades devidamente valorizado pelas Cortes Superiores, quando não se furtou a realizar o sopesamento entre princípios[1]. Neste sentido, vale citar o voto proferido pelo Ministro Paulo Medina, em seu voto exarado no julgamento do EResp nº 446.077:
"Penso que a solução de casos como o dos autos não se faz pela teoria da responsabilidade, mas pela aplicação de princípios gerais de Direito.
Nessa senda, cumpre assinalar que "a teoria do fato consumado" nada mais é do que a convalidação de uma situação de fato ilegal, que se perdurou ao longo do tempo. Esta convalidação justifica-se pela aplicação do princípio da segurança jurídica, em detrimento do princípio da legalidade estrita, diante do caso concreto. (...)
Tenho defendido que a legalidade estrita não é um postulado máximo do Direito Administrativo. À legalidade, deve-se associar toda gama de princípios gerais de Direito e os demais princípios do regime jurídico - administrativo, para que se alcance, na expressão de GERMANA DE MORAES, a juridicidade, isto é, legalidade com justiça, na Administração Pública brasileira." (STJ - EREsp: 446077 DF 2004/0127683-8, Relator: Ministro PAULO MEDINA, Data de Julgamento: 10/05/2006, S3 - TERCEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJ 28/06/2006 p. 224 - destacamos)
De fato, questões complexas e com impactos relevantes merecem a interpretação à luz dos princípios de Direito aplicáveis. Na questão relativa à aquisição de imóveis, a segurança jurídica do adquirente de boa-fé, que realizou a devida conferência da situação jurídica e econômica do imóvel e do vendedor não merecia, a nosso sentir, ser relativizada em face da estrita legalidade.
A necessidade de observância do princípio da segurança jurídica também fora referendada pelo STJ no seguinte julgamento, relatado pelo Ministro Napoleão Nunes Maia Filho:
"(...) 7. A singularidade deste caso o extrema de quaisquer outros e impõe a prevalência do princípio da segurança jurídica na ponderação dos valores em questão (legalidade vs segurança), não se podendo ignorar a realidade e aplicar a norma jurídica como se incidisse em ambiente de absoluta abstratividade." (RMS 24.339/TO, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 30/10/2008, DJe 17/11/2008)
Oportuno considera, a respeito, a lição de José Joaquim Gomes Canotilho, que define a segurança jurídica como elemento essencial ao Estado de Direito, desenvolvendo-se em torno dos conceitos de "estabilidade" e "previsibilidade". Assim, destaca a "(...) exigência de certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos, em relação aos efeitos jurídicos dos actos normativos".
Não há como se negar que a prevalência do art. 185 do Código Tributário Nacional mesmo em caso de alienações sucessivas promoverá um ambiente de extrema instabilidade nas relações comerciais, especialmente envolvendo bens imóveis.
Com efeito, carece de razoabilidade, além de ser antieconômico, exigir que o adquirente imobiliário realize a conferência da situação econômica de cada um dos vendedores anteriores da cadeia, na época de cada uma destas transações, inclusive, sem qualquer corte temporal (uma vez que não há, sequer, prescrição a afastar a configuração da fraude à execução).
Há que ser considerado, ainda, na avaliação da questão em tela, o princípio da proporcionalidade, que deve permear a invalidação de qualquer ato. Conforme elucida Marçal Justen Filho:
"A proporcionalidade significa o dever de realizar, do modo mais intenso possível, todos os valores consagrados pelo Ordenamento Jurídico. Ponderar os valores significa compatibilizá-los, o que pode exigir uma relativa atenuação de cada qual dos valores envolvidos.
(...)
Como derivação implícita, deve-se prestigiar a instrumentalidade das normas jurídicas em relação aos fins que se orientam. A proporcionalidade exclui interpretações que tornem inútil a(s) finalidade(s) buscada(s) pela norma." (destacamos)
Na mesma linha, oportuna também a constatação de Lúcia Valle Figueiredo:
"Com efeito, resume-se o princípio da proporcionalidade em que as medidas tomadas pela Administração estejam na direta adequação das necessidades administrativas. Vale dizer: só se sacrificam interesses individuais em função de interesses coletivos, de interesses primários, na medida da estrita necessidade, não se desbordando do que seja realmente indispensável para a implementação da necessidade pública."
A nosso ver, não há justificativa para o sacrifício dos interesses individuais dos adquirentes de imóveis munidos de boa-fé objetiva, que perderão os bens (e dificilmente recuperarão o investimento realizado), em favor da viabilização da satisfação de créditos tributários de devedores que não honraram com as suas obrigações.
Trata-se de verdadeiro desvio de finalidade do ordenamento jurídico, prejudicando direitos individuais de pessoas de boa-fé, com a consequência rasa de promover singelo aumento na taxa de recuperação de créditos tributários pelo Fisco.
Nesse sentido, e retornando à análise da decisão do STJ em debate, importante anotar o voto-vista do Ministro Gurgel de Faria, em que consignou:
"Ressalto que existe uma preocupação de minha parte quanto à proteção do adquirente de boa-fé que, mesmo agindo de forma diligente, pode sofrer os efeitos do reconhecimento da fraude à execução fiscal praticada pelo proprietário originário, com a declaração de nulidade do negócio jurídico de compra e venda. Não me parece razoável exigir do comprador que confira toda a cadeia sucessória do imóvel para que possa se resguardar de futura perda do bem.
Contudo, como bem registrou o em. Ministro Benedito Gonçalves na sessão do dia 14/03/2023, há uma peculiaridade no caso concreto registrada no acórdão de origem, de que o devedor originário, quando já inscrito em dívida ativa, vendeu o imóvel para uma pessoa, que, no mesmo dia, alienou-o para a recorrente, autora dos embargos de terceiro, sendo certo que esse quadro fático não se mostra favorável para o debate acerca da distinção entre as hipóteses de alienação sucessiva e a situação enfrentada no julgamento do Tema 290 do STJ."
A preocupação manifestada pelo Ministro é louvável. De fato, não há qualquer razoabilidade em se exigir do adquirente de imóveis a conferência de toda a cadeia de vendedores.
E, de fato, as circunstâncias do caso concreto não favoreciam a defesa do adquirente em homenagem ao princípio da segurança jurídica, uma vez que, embora tenha realizado a verificação do vendedor imediato, o fato de este haver recebido a propriedade por via de escritura lavrada na mesma data justificaria a cautela de realizar a conferência também sobre a situação do anterior.
O voto-vista do Ministro Gurgel permite que se guarde esperança de que o assunto seja revisitado pelo STJ, a fim de temperar a aplicação do Tema nº 290, ao menos quando as circunstâncias do caso concreto demonstrem a falta de razoabilidade em se exigir do comprador a checagem documental de toda a cadeia de vendedores.
4. CONCENTRAÇÃO DOS ATOS NA MATRÍCULA
Não há como se deixar de mencionar, em trabalhos como o presente, a Lei nº 13.097/2015, que veio a materializar o princípio da concentração dos atos na matrícula, em claro intuito de favorecer a segurança do adquirente de boa-fé, deslocando para o credor o ônus de publicizar a informação referente a seu crédito.
Tais regras foram ratificadas pela Lei nº 14.382/2022, que tornou expressa a inexigência, para fins de caracterização da boa-fé do adquirente, do levantamento de qualquer documento "além daqueles requeridos nos termos do § 2º do art. 1º da Lei nº 7.433/1985".
Ocorre que dentre os documentos exigidos pelo referido dispositivo da antiga lei estão, justamente, as "certidões fiscais", de modo que, na prática, o princípio da concentração dos atos na matrícula acaba não sendo aplicável em relação a créditos de natureza tributária.
A respeito, já advertia Juliana Rubiniak, quando da edição da Lei nº 13.097/2015:
"(...) cumpre atentar para o fato de que a Lei n. 13.097/2015 não apresentou nenhum regramento expresso que permita a dispensa, com segurança, dos estudos acerca da eventual existência de débitos fiscais que envolvam o imóvel e/ou seus titulares de direitos.
Ao contrário disso, o que se tem debatido nas rodas de discussão, grupos de estudo, palestras e outros círculos de manifestações relacionados às regras de concentração de atos na matrícula, é a importância de se manter a análise de documentos que comprovem a inexistência de óbices para a aquisição segura do imóvel com relação a eventuais dívidas fiscais. (...)
E, tendo em vista que lei ordinária, como é o caso da Lei n. 13.097/2015, não altera lei complementar, como é o caso do CTN, as regras relativas à concentração dos atos na matrícula do imóvel não são aplicáveis para os casos de dívidas já inscritas perante a administração pública."
O alerta da jurista mostrar-se ia acertado, pois se o STJ, como visto acima, considerou que o CTN, na condição de lei especial, prevalece sobre a legislação processual civil, a mesma ratio deve ser aplicada em relação à Lei nº 13.097/2015, que, ademais, possui status de lei ordinária, enquanto o codex tributário é admitido como lei complementar.
Portanto, parece inviável argumentar que a concentração dos atos na matrícula seria oponível pelo adquirente em caso de crédito tributário inscrito em dívida ativa, corroborando a necessidade de verificação da situação fiscal do vendedor.
5. CRITÉRIOS PARA DUE DILIGENCE
Diante do entendimento consagrado pelo STJ (caso não haja sua reversão), fato é que o adquirente de imóveis estará diante de uma missão inglória quando da realização da due diligence sobre o vendedor imediato e todos os anteriores da cadeia dominial.
Com efeito, vale frisar que o risco em exame é de fraude à execução, cuja consequência é a ineficácia perante o credor (Fisco), de modo que se faz desnecessário o ajuizamento de ação pauliana - afastando, ainda, a incidência de qualquer prazo prescricional.
Neste sentido, a todo rigor, seria necessária a averiguação de todos os proprietários anteriores, cujas alienações tenham sido realizadas após a vigência da Lei Complementar nº 108/2005.
Com um pouco mais de bom senso (algo em que, infelizmente, nem sempre é possível se fiar), uma cautela mínima determinaria a avaliação dos vendedores envolvidos em transações realizadas nos últimos dez anos, como defende Luciano Mollica:
"Se em até dez anos após a alienação do bem pelo seu devedor, determinado credor não chegar ao momento de solicitar o reconhecimento da fraude de execução, não nos parece mais razoável que o faça, pois não é por conta das exceções que se devem fazer as regras. Ir além de dez anos nas pesquisas em nome de antecessores, evidentemente, faria com que tais pesquisas não tivessem fim."
Além do prazo, é importante definir que tipo de verificação será feita sobre cada um dos vendedores anteriores. O levantamento atual das certidões negativas de débitos, nas três esferas (federal, estadual e municipal) é suficiente para rechaçar a possibilidade de fraude à execução, já que, se houvesse crédito tributário anteriormente em dívida ativa, já estaria comprovadamente extinto.
De outro lado, mesmo na hipótese de as certidões atuais se apresentarem positivas com efeitos de negativa, não se poderia descartar a possibilidade de o crédito tributário ter sido constituído e inscrito em dívida ativa e momento anterior à venda, com posterior parcelamento pelo contribuinte para suspender sua exigibilidade. Assim, caso este vendedor venha a inadimplir com o parcelamento, o crédito tributário tornar-se-ia novamente exigível, trazendo risco à operação.
Neste último cenário, a fim de garantir que a venda por tal contribuinte não fora realizada com fraude à execução sob o critério do art. 185 do Código Tributário Nacional, nos parece recomendável a obtenção de cópia da escritura pública de compra e venda respectiva, na qual o tabelião deverá ter informado se a parte vendedora apresentou as correspondentes certidões negativas de débito.
Ausente tal informação, não haverá como ser certificada a ausência de fraude à execução na referida venda antecedente, de modo que a conclusão da due diligence deverá ser pela insegurança do negócio jurídico atualmente pretendido.
CONCLUSÕES
A fraude à execução é um instituto importante a fim de evitar prejuízos a credores por parte de devedores mal-intencionados. De outro lado, a lei deve preservar o devedor de boa-fé objetiva, que realizou a devida conferência da situação jurídica do vendedor do bem.
Em matéria tributária, a ineficácia da venda de bens pelo devedor é facilitada desde a vigência da Lei Complementar nº 108/2005, que instituiu a presunção da fraude à execução quando feita após a inscrição de crédito tributário em dívida ativa.
A caracterização da fraude à execução no caso de alienações sucessivas costumava ser objeto de relativização pelas cortes superiores; porém, em caso de crédito tributário inscrito em dívida ativa, o entendimento do STJ vem convergindo para a prevalência do art. 185 do CTN, reconhecendo a fraude mesmo que o adquirente tenha realizado a devida conferência da situação jurídico-econômica do vendedor direto.
A despeito do nosso entendimento contrário à posição mantida pelo STJ, que ignora o princípio da segurança jurídica e atrai instabilidade para as relações negociais, é fato que, diante da orientação da Corte, o trabalho de due diligence ganhou importância ainda maior, devendo abranger o levantamento de certidões negativas fiscais e/ou cópia das escrituras públicas que formalizaram as vendas anteriores.
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THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao novo Código Civil, Volume III, Tomo I: Livro III - Dos fatos jurídicos: do negócio jurídico. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
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