publicado em 04/09/2020
No início do mês de março, a pandemia alcançou o Brasil e a reboque das medidas de distanciamento e isolamento social determinadas pelas autoridades, inevitavelmente, o setor econômico e as relações de trabalho foram fortemente impactados, com a necessidade de adoção de várias medidas emergenciais por parte das empresas e pelo Governo Federal com o intuito de minimizar os efeitos deletérios sobre o mercado de trabalho, as mais conhecidas delas aquelas trazidas com a MP 927 e não convertida em lei e a MP 936, que resultou na Lei 14.020/20.
Por ora, faremos apenas a análise pontual do art. 29, da MP 927, editada com o intuito de flexibilizar as relações de trabalho e que trouxe medidas excepcionais - BH individual com até 18 meses para compensação, diminuição dos prazos para concessão de férias, teletrabalho, antecipação dos feriados, postergação de pagamentos -, mas que também trouxe o artigo 29, que disse expressamente que "os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal."
Essa MP gerou acalorados debates e o imediato ajuizamento de Ações Diretas de Inconstitucionalidade, contestando, dentre outros dispositivos, o referido artigo 29, sob o argumento, em última análise, de afronta ao valor constitucional social do trabalho.
Indeferida a tutela cautelar monocraticamente pelo Ministro Marco Aurélio, uma vez levada ao Plenário, mereceu por parte do STF acolhimento de medida cautelar para suspender a eficácia dos artigos 29 e 31 da MP 927/2020, nos termos do voto condutor prevalecente do Ministro Alexandre de Moraes.
Na verdade, entendemos ter sido desnecessária a inclusão do artigo 29 na MP 927, porque a legislação existente antes da edição da MP, em 22/03/20, já disciplinava e trazia dispositivos suficientes para regular a situação, tendo antecipado um debate que possivelmente demoraria anos até chegar à Suprema Corte, que a julgaria não durante a pressão e sob a influência e o clamor da pandemia.
A lei 8.213/91, em seu art. 19, caracteriza o acidente de trabalho como o que "ocorre pelo exercício do trabalho a serviço de empresa ou de empregador doméstico ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do art. 11 desta lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho".
O art. 20, da mesma lei, por sua vez, destaca as entidades mórbidas equiparadas e acidente de trabalho: doença do trabalho, doença profissional e concausalidade.
Além disso, o § 1º do art. 20, da Lei 8.213, elenca as hipóteses que não serão consideradas como doença do trabalho e prevê, em sua alínea "d", "a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho."
E ainda, o art. 21 dispõe sobre os eventos que se equiparam ao acidente de trabalho para fins legais, destacando em seu inciso III: "a doença proveniente de contaminação acidental do empregado no exercício de sua atividade."
Assim, estes dispositivos podem ser aplicados às situações da pandemia, estando clara, por suas redações, a necessidade de haver comprovação de que a doença foi contraída em razão do trabalho, por exposição direta ao agente nocivo sem a devida proteção, de modo a poder equiparar a positivação por COVID-19 a acidente de trabalho, com fundamento no art. 21, § 1º , "d", da lei 8.213/91.
Mas havia outros fundamentos.
Com efeito, como regra geral, vige a teoria da responsabilidade civil subjetiva decorrente das atividades laborais, que exige, além da prática do ato ilícito pelo empregador, a presença do dolo ou da culpa e a necessária comprovação do nexo causal com as atividades laborais exercidas, consoante disposições constantes dos artigos 7º, XXVIII[1], da CF/1988 e 186[2] e 927[3], do Código Civil.
A única exceção ao acima dito seria para as atividades consideradas de risco, quando incidiria a responsabilidade objetiva - pode se responsabilizar o empregador independente de dolo ou culpa - amparada no parágrafo único, do art. 927 do Código Civil -, reconhecido como constitucional pelo STF, que aprovou tese em repercussão geral no seguinte sentido de que é "? constitucional a responsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho nos casos especificados em lei ou quando a atividade normalmente desenvolvida, por sua natureza, apresentar exposição habitual a risco especial, com potencialidade lesiva, e implicar ao trabalhador ônus maior do que aos demais membros da coletividade".
Então, afinal, o que significou esta decisão do STF e quais os seus impactos no dia a dia das empresas?
Em apertada análise, o STF, ao suspender o art. 29 da MP 927, acabou por inverter a presunção anteriormente desfavorável ao trabalhador, que era vista apenas como exceção de que a doença tinha relação com o trabalho, em prova quase impossível.
Por outro lado, a suspensão do citado art. 29 não significa, automaticamente, que a contaminação pela COVID-19 tem necessariamente relação com a atividade desenvolvida para todo e qualquer trabalhador.
A nosso ver, permanece intocada a possibilidade das empresas não só contestarem o nexo causal da contaminação com a atividade desenvolvida (muitos trabalhadores têm vidas particulares desregradas fora do trabalho, mantendo convívio social normal mesmo em tempos de pandemia), assim como têm e devem exercitar o direito de invocar a teoria da responsabilidade subjetiva e, ainda, suscitar as excludentes de nexo causal (culpa exclusiva da vitima, fato de terceiro e caso fortuito e força maior).
Por fim, como forma de contribuir em suas defesas contra ações que visem o reconhecimento do nexo e a responsabilização civil por doenças causadas pela COVID-19, devem as empresas, cada vez mais, adotar e documentar as medidas recomendadas pelas autoridades de saúde e das relações do trabalho, notadamente aquelas previstas na Portaria Conjunta 20, do Ministério da Saúde e Secretaria Especial do Trabalho, demonstrando que implementaram as recomendações visando prevenir, controlar e mitigar os riscos de transmissão do vírus.
Luís Alberto Gonçalves Gomes Coelho, advogado e professor da ESA/OABPR e da pós da UniCuritiba e das Faculdades da Indústria. Sócio de Gomes Coelho & Bordin Sociedade de Advogados
Fonte: Gomes Coelho & Bordin Sociedade de Advogados